segunda-feira, 27 de julho de 2015

A gorda

O chefe a mediria de alto a baixo quando fosse bater o ponto, tinha certeza disso. Aquela íntima certeza que nos acomete ao nos aventurarmos na beira do fogo, quando temos doses a mais e esperteza a menos. Estava atrasada para o trabalho. Segunda vez só essa semana, seria a frase a ressoar por entre as baias do setor. E, para coroar a humilhação, ainda soltaria uma pérola do tipo “Não fosse essa voz, senhorita...”.
Soubesse ele o tamanho da raiva que alimentava nas veias a cada insinuação de demérito ou de incapacidade, salvando-se a voz, é claro! Afinal, para uma operadora de telemarketing era o que bastava. Ninguém olharia para as faces rosadas, o corpo redondo, as mãos fofas, as roupas largas ou as sapatilhas abrigando pés de batatinha – como sua mãe costumava dizer.
Mas, o chefe, tinha uma particular predileção por provocar e humilhar seu espírito. Queria domá-la. Adestrar uma cadelinha a mais para as sessões pós-expediente. Não por considerá-la uma mulher bonita, mas para manter o saldo de funcionárias testadas e aprovadas no sofá. Sabendo ou não disso, cada nova doma fazia o poder sobre o grupo crescer, mas diminuía as vendas. As cadelinhas do patrão, invariavelmente, acabavam sofrendo de baixa auto-estima, depressão ou nojo crônico do careca. E, como final esperado, pediam as contas ou levavam uma alpargata nos fundilhos.
Por várias vezes ela tivera a impressão de que alguns números com os quais entrava em contato eram testes ou talvez trotes do careca suarento. Uma voz sempre ofegante do outro lado da linha, que se intensificava em um ritmo de quem brincava com as partes e já tocaiava o telefone, aguardando um timbre conhecido. Um alguém que fingia interesse pelo produto, deixava a operadora pronunciar o texto todo e fazia perguntas cada vez mais próximas da voz que treme à beira de um orgasmo.
Pensar em oferecer o pé aos glúteos da empresa, o fizera várias e várias vezes, das formas mais estranhas, possíveis e impossíveis. Mas, já havia aprendido a lição de que manequins acima de 48 conseguem os bastidores. Nada de holofotes para ela, nem mesmo com MBA ou graduação com louvor na turma da universidade pública federal. O mundo do trabalho era extremamente cruel para sua pouca experiência de vida prática.
Como não tinha muito brilhantismo nem pendores para os esportes, a forma mais honesta de se sobressair era a inteligência. Mesmo com os incômodos de ser a amiga nerd do menino mais lindo da turma, de ser a conselheira sentimental das pegadoras do colégio. Sim, ela deixava que as coisas fluíssem assim. Antes isso que o nada social.
Gostava de dançar, de sentir-se acompanhada durante os 3 ou 4 minutos da canção. Mas desistiu no dia em que escutou os garotos rindo depois de dizerem que ela cheirava bem, mas era impossível juntar as mãos ao redor da sua cintura. “Cintura?!” Outro gargalhou, “aquilo é o protótipo da rolha do poço!”. “Se ela fosse mais magra... seria apenas uma gorda” e continuaram as piadas.
Ser Inteligente não garantiu que tivesse experiência de vida nem muito jeito ou tolerância com as pessoas. Vivia à espera do tranco, da piada, do preconceito, à sombra do estereótipo. Era uma desconfiada por natureza. O ser humano a deixava assim. Tipos como o careca suarento, então, potencializavam a timidez e aprontavam as garras.
Desejaria ser uma romântica ou mais uma rata de academia a fazer as mais inusitadas dietas e consumir shakes milagrosos da TV mas, os pés de batatinha, fincados aos chão, tinham raízes no realismo que consumia ávida da biblioteca do avô.
Por vezes preferiria ser uma das mulheres de Nelson Rodrigues ardendo em suas vidas imperfeitas e rodeadas pela traição. Seria uma existência mais quente que a sua, certamente.
Viver com os avós não seria a primeira opção de sua adolescência até a morte de sua mãe. Coisa a que terapia nenhuma dera jeito. Nem ela queria que desse. Preferia a imagem da mãe heroína, lutadora e forte para se apegar que ouvir os xingamentos do avô nas noites em que julgavam que ela estava entregue aos braços de Morfeu.
“Não fosse essa voz, senhorita...”. “Vá ocupar logo seu posto de trabalho! Quero essa meta batida até a hora do almoço, entendido?! E isso serve para as demais cadelinhas! Agradeçam à gorda!” disse isso, girou sobre os calcanhares e caminhou em direção à saída. Pelo menos, o restante da manhã seria mais fresco sem a presença do careca suarento.
Ela sentou-se, colocou o head set, ligou o computador, pegou o script mas algo lhe ardia nas entranhas. Longe de ser uma pontada de gastrite, aquele sentimento tinha nome: raiva recolhida. Tinha certeza, pela intensidade, que alguém seria consumido por ela. Preferia que fosse o patrão.
Num ímpeto de coragem e uma ira estúpida, acompanhou o fechar da porta do elevador, e os números dos andares no mostrador chegarem ao 0. Sem a intenção de chamar mais atenção do que seu tipo físico já fazia, fingiu que o bebedouro era seu destino, abriu a porta do “recando da doma” e estudou minuciosamente os detalhes do ambiente. Uma devastadora brainstorm ocupou seus neurônios e se materializou num riso maquiavélico. Era isso!
Hora do almoço, meta batida duas vezes, cantadas telefônicas a preencher seu rechonchudo ego e uma ansiedade consumindo seu sangue. Suava mais que o comum, mesmo com o ar condicionado em potência ártica. Olhou novamente para as anotações que trazia no bolso, respirou fundo e fez uma breve oração ao São Jerônimo. Aprendera a pouco que esse era o padroeiro das secretárias. Nunca fora devota, muito menos religiosa, mas agora percebia que carecia de um milagre para seu intento se concretizar.
Subiu a Consolação calculando as frases que diria, os movimentos a serem executados, reforçou o batom, completou o perfume entre os seios, adentrou o hall do hotel e se fez anunciar. Apertou todos os botões do elevador porque a coragem começava a diminuir. Quando uma lágrima teimosa escorreu por seu rosto, recordou todas as humilhações de uma vida. Olhos fechados, cerrou os punhos e disse entre dentes “De hoje não passa!”.
Quando pisou no corredor, localizou facilmente o número do quarto. Olhou a porta, mirou-se em um espelhou ladeado por um vaso onde se via um arranjo com flores brancas, amarelas, lilases e vermelhas. Recolheu uma, limpou os espinhos, pensando que aquela seria a arma perfeita.
Ouviu a porta se abrir, mordeu os lábios, uma fisgada no estômago lhe recordava que estava faminta, mas tinha objetivos maiores para aquele intervalo que seu almoço. Municiou-se de seu melhor sorriso, quando sentiu seu ombro tocado.
Conhecia bem aquela voz, firme, aveludada. Há meses a ouvia todas as manhãs. Era o que a motivava a continuar naquele curral e suportar o careca suarento. Construíra uma amizade que logo se tornara em algo mais que carinho. Entretanto, tinha medo. Medo de perder o emprego, medo de ser rejeitada quando fosse vista em seu corpo plus size e não pudesse mais ser abrigada pela linda voz de operadora de telemarketing.
Tremeu, suspirou, olhos baixos, girou sobre os calcanhares e manteve o sorriso. Finalmente, seus olhares se cruzaram. Respirou fundo para falar algo que foi impedido por dedos gentis. Estendeu a arma perfumada. Recebeu um sorriso largo em retribuição e ouviu “Eu tinha certeza que você era muito mais que uma bela voz.”
Alimentou-se, por duas horas, do frescor de elogios como aquele.
Chegou ao escritório. O careca já estava lá. Cara de poucos amigos e o relatório das vendas da manhã nas mãos. A frase pronta na ponta da língua. “Não fosse essa voz, senhorita... Que essas estendidas no horário de almoço parem por aqui, entendido?”. Ela acenou com a cabeça. Em sua baia, copiou o conteúdo da pasta de vídeos do celular. Imprimiu duas folhas, gravou um CD. Reparou no relógio vermelho sobre a parede branco gelo. Aguardou mais 30 minutos. Recolheu suas coisas, colocou numa caixa de arquivo. Levantou-se e disse em alto e bom tom. “Gente... gostaria de agradecer a todas. Aprendi com vocês lições pra vida inteira.”
Um burburinho se instalou no ambiente. O suarento saiu de seu escritório batendo a porta atrás de si. “O que está acontecendo aqui, afinal de contas, senhorita?”.
A gorda pegou sua caixa e dois envelopes. Caminhou em direção ao suarento. Olhou vitoriosa para o chefe. Tirou o lenço que ele carregava no bolso, secou sua careca e, sem dizer palavra, imprimiu ali seus lábios com batom. Estendeu os envelopes, passou pela porta e deixou apenas o eco de seus saltos contra o chão do corredor.
Em um dos envelopes estava sua carta de demissão.

No outro, um CD e uma folha onde se lia “Para lhe ensinar como agradar a sua mulher”.

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