O muro
interminável acompanhava o comprimento da fila. Um cigarro entre os dedos
defumava os pensamentos a serpentear entre contas, dívidas, lista de
documentos, dicas de comportamento, fome e a chuva que ameaçava despencar.
Olhava para a
mulher do salgadinho e sentia desejo de gastar os três reais e cinquenta
centavos que tinha no bolso. Estava em dúvida se aguentaria caminhar até sua
casa se usasse o dinheiro para se alimentar. O café preto que tomara às quatro
da manhã já não fazia mais efeito para enganar o estômago nem para afastar o
sono.
As pernas
formigavam, o corpo pesava, o muro amparava, com sua brancura, a necessidade de
permanecer em pé. A luz do sol começava a fazer suar. O abrigo da madrugada
abria suas asas, revelando a vulnerabilidade das roupas gastas.
Mais três
passos. Mais um ambulante querendo seu dinheiro da condução. O coração
apertado, num peito oprimido, chegava a doer.
O calor
refletido no branco do muro roía suas retinas. Mais cinco passos e a pasta com
documentos caía. Curvar-se era um desafio ao cérebro, que girava entre a
tontura da fome e da sede. Pediria gelo ao moço da água quando passasse novamente.
Agora, os
braços compartilhavam o formigamento. Uma angústia vermelha pingou de seu
nariz. Suava frio e tremia. Ninguém por perto percebeu quando colou as costas
no amparo de cimento tingido de branco.
Enquanto
tossia, olhos fechados, nem reparou que dois ou três espertalhões passaram em
sua frente, tomando seu lugar na fila.
Mais sangue
saindo de seu nariz, menos consciência, mais dores na cabeça e no coração.
Uma angústia,
um medo, um grito... um corpo, uma fila de candidatos a coveiro, um muro de
cemitério, alguns curiosos, um vendedor de água, a moça dos salgados, um
caminhão do IML....
Um repórter noticiando,
em primeira mão, uma ironia.