segunda-feira, 8 de junho de 2020

Fila


O muro interminável acompanhava o comprimento da fila. Um cigarro entre os dedos defumava os pensamentos a serpentear entre contas, dívidas, lista de documentos, dicas de comportamento, fome e a chuva que ameaçava despencar.
Olhava para a mulher do salgadinho e sentia desejo de gastar os três reais e cinquenta centavos que tinha no bolso. Estava em dúvida se aguentaria caminhar até sua casa se usasse o dinheiro para se alimentar. O café preto que tomara às quatro da manhã já não fazia mais efeito para enganar o estômago nem para afastar o sono.
As pernas formigavam, o corpo pesava, o muro amparava, com sua brancura, a necessidade de permanecer em pé. A luz do sol começava a fazer suar. O abrigo da madrugada abria suas asas, revelando a vulnerabilidade das roupas gastas.
Mais três passos. Mais um ambulante querendo seu dinheiro da condução. O coração apertado, num peito oprimido, chegava a doer.
O calor refletido no branco do muro roía suas retinas. Mais cinco passos e a pasta com documentos caía. Curvar-se era um desafio ao cérebro, que girava entre a tontura da fome e da sede. Pediria gelo ao moço da água quando passasse novamente.
Agora, os braços compartilhavam o formigamento. Uma angústia vermelha pingou de seu nariz. Suava frio e tremia. Ninguém por perto percebeu quando colou as costas no amparo de cimento tingido de branco.
Enquanto tossia, olhos fechados, nem reparou que dois ou três espertalhões passaram em sua frente, tomando seu lugar na fila.
Mais sangue saindo de seu nariz, menos consciência, mais dores na cabeça e no coração.
Uma angústia, um medo, um grito... um corpo, uma fila de candidatos a coveiro, um muro de cemitério, alguns curiosos, um vendedor de água, a moça dos salgados, um caminhão do IML....
Um repórter noticiando, em primeira mão, uma ironia.