quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Sem magia

 Uma estrela cadente

Me atirou um pedido.

Quanta violência!

Atirei nela de volta!

 

Ela fez juz ao nome.

E eu continuei

Nessa vida, sem magia.

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Eu te Covido

 Eu te Covido

 

Vou te covidar por 14 dias

Não importa onde, covidarei.

No busão, no trem, no metrô.

Banco, mercado, pracinha.

Vou te covidar falando, tossindo

Ao espirrar, respirar forte, ô sorte!

Posso covidar muitas pessoas

A Avó, o pai, a mãe

O neném, a teen, o jovem.

Não ligo para a cor, o sexo, o dindim.

O que quero é que me digam sim,

Pode covidar!

Vou covidar com seu descuido.

Vou covidar o sujo e o mal lavado

Sem discriminar! É meu momento

De brilhar. E, quando eu me for

(doce ilusão) levarei seu amigo, sua irmã

seu primo, a paixão.

Covidar é fácil! Tire a máscara!

Álcool, não! Aglomere, não espere a liberação.

E, se testar positivo, mantenha sua circulação

Bares, lojas, restaurantes. Faça tudo como antes!

Afinal, eu covidarei, tu covidarás, nós covidaremos!

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Fila


O muro interminável acompanhava o comprimento da fila. Um cigarro entre os dedos defumava os pensamentos a serpentear entre contas, dívidas, lista de documentos, dicas de comportamento, fome e a chuva que ameaçava despencar.
Olhava para a mulher do salgadinho e sentia desejo de gastar os três reais e cinquenta centavos que tinha no bolso. Estava em dúvida se aguentaria caminhar até sua casa se usasse o dinheiro para se alimentar. O café preto que tomara às quatro da manhã já não fazia mais efeito para enganar o estômago nem para afastar o sono.
As pernas formigavam, o corpo pesava, o muro amparava, com sua brancura, a necessidade de permanecer em pé. A luz do sol começava a fazer suar. O abrigo da madrugada abria suas asas, revelando a vulnerabilidade das roupas gastas.
Mais três passos. Mais um ambulante querendo seu dinheiro da condução. O coração apertado, num peito oprimido, chegava a doer.
O calor refletido no branco do muro roía suas retinas. Mais cinco passos e a pasta com documentos caía. Curvar-se era um desafio ao cérebro, que girava entre a tontura da fome e da sede. Pediria gelo ao moço da água quando passasse novamente.
Agora, os braços compartilhavam o formigamento. Uma angústia vermelha pingou de seu nariz. Suava frio e tremia. Ninguém por perto percebeu quando colou as costas no amparo de cimento tingido de branco.
Enquanto tossia, olhos fechados, nem reparou que dois ou três espertalhões passaram em sua frente, tomando seu lugar na fila.
Mais sangue saindo de seu nariz, menos consciência, mais dores na cabeça e no coração.
Uma angústia, um medo, um grito... um corpo, uma fila de candidatos a coveiro, um muro de cemitério, alguns curiosos, um vendedor de água, a moça dos salgados, um caminhão do IML....
Um repórter noticiando, em primeira mão, uma ironia.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

De sonho e de pó


Minha mãe sempre deixava a carne do peito do frango para o marido. As asas eram minhas. Meus irmãos disputavam as coxas. Para ela restavam as costelas, o pescoço e o sobrecu. Nunca havia pesado no que isso representava até constituir minha própria família.
Esposa, uma filha de 7, um sobrinho de 11, uma enteada de 15 e dois salários mínimos para dar conta de todos. O que ajudava era a cesta básica do trabalho e a casinha de aluguel nos fundos da nossa. Mas, morar numa casa de dois quartos e um banheiro não era nosso maior sonho.
Quando minha Mara perdeu o emprego foi que entendi esse jeito de partilhar o frango da panela. Certa noite, cheguei em casa com a fome apertando as costelas. Ela pegou um prato e, gentilmente, com os olhos baixos, colocou algo para eu comer. Fez o mesmo com os meninos. Achei estranho ela não ter se servido.
A fome era tanta que nem perguntei o porquê.
Diante da TV, comia e procurava alguma coisa para me distrair. Peguei os pratos das crianças e fui para a cozinha. Sentada diante de uma porção de arroz com feijão banhado pelo caldo da carne, Mara deixava grossas lágrimas rolarem.
Não fiz perguntas.tudo era claro. Coloquei os pratos na pia, me ajoelhei diante dela, coloquei a cabeça em seu colo e, em meio a soluços e lágrimas, senti parte do meu cabelo umedecer. Ela me fazia um cafuné e, como que a me ninar, repetia: Tudo vai ficar bem, você vai ver!
Como isso demorava a acontecer quase dobrei minhas horas de trabalho. Queria o melhor para os meus. Só que os extras não cobriam a falta que o salário de Mara fazia.
Com o tempo, no entanto, fui percebendo uma melhora nas finanças. As frutas voltaram a aparecer na cesta e, em certas vezes, havia bife na marmita. Meus esforços pareciam, finalmente, dar resultados.
Eu voltava a sonhar com um peru no Natal e uma cidra para o ano novo.
Um dia, porém, estava no serviço e o patrão me chamou no escritório. Senti o sangue gelar. Ele me disse que minha enteada telefonara e que era melhor eu ir para casa.
Enquanto a bicicleta se sacudia pelas ruas, imaginava o que poderia ser: um acidente, um choque, um corte, um mal súbito... quase paro embaixo de um caminhão!
Em casa, um grupo de pessoas espreitava nossa porta com sorrisos carniceiros estampados.
As meninas choravam abraçadas e meu sobrinho chutava a bola furiosamente contra a parede do quintal. Sem entender direito, chamei os três e perguntei o que se passava. Onde estava Mara?
Foi a pequena Tati quem rompeu o silêncio e contou que os amigos do policial, que aguardava do lado de fora da casa, haviam levado minha esposa para a cadeia.
Pedi para minha irmã que olhasse os três e fui para o distrito policial.
Pude ver, através de uma janela de vidro, minha mulher algemada em um cano de metal preso à parede, enquanto esperava alguma informação sobre seu caso. Um policial teve pena de meu desespero e revelou a razão de tudo: denúncia anônima de tráfico de drogas e que um pó branco havia sido encontrado embaixo do piso de minha casa.
Impossível não perceber que aquele fora o jeito encontrado por Mara para cumprir sua promessa.
Mas, inevitavelmente, me perguntava: E agora, meu Deus? E agora?