segunda-feira, 18 de maio de 2020

De sonho e de pó


Minha mãe sempre deixava a carne do peito do frango para o marido. As asas eram minhas. Meus irmãos disputavam as coxas. Para ela restavam as costelas, o pescoço e o sobrecu. Nunca havia pesado no que isso representava até constituir minha própria família.
Esposa, uma filha de 7, um sobrinho de 11, uma enteada de 15 e dois salários mínimos para dar conta de todos. O que ajudava era a cesta básica do trabalho e a casinha de aluguel nos fundos da nossa. Mas, morar numa casa de dois quartos e um banheiro não era nosso maior sonho.
Quando minha Mara perdeu o emprego foi que entendi esse jeito de partilhar o frango da panela. Certa noite, cheguei em casa com a fome apertando as costelas. Ela pegou um prato e, gentilmente, com os olhos baixos, colocou algo para eu comer. Fez o mesmo com os meninos. Achei estranho ela não ter se servido.
A fome era tanta que nem perguntei o porquê.
Diante da TV, comia e procurava alguma coisa para me distrair. Peguei os pratos das crianças e fui para a cozinha. Sentada diante de uma porção de arroz com feijão banhado pelo caldo da carne, Mara deixava grossas lágrimas rolarem.
Não fiz perguntas.tudo era claro. Coloquei os pratos na pia, me ajoelhei diante dela, coloquei a cabeça em seu colo e, em meio a soluços e lágrimas, senti parte do meu cabelo umedecer. Ela me fazia um cafuné e, como que a me ninar, repetia: Tudo vai ficar bem, você vai ver!
Como isso demorava a acontecer quase dobrei minhas horas de trabalho. Queria o melhor para os meus. Só que os extras não cobriam a falta que o salário de Mara fazia.
Com o tempo, no entanto, fui percebendo uma melhora nas finanças. As frutas voltaram a aparecer na cesta e, em certas vezes, havia bife na marmita. Meus esforços pareciam, finalmente, dar resultados.
Eu voltava a sonhar com um peru no Natal e uma cidra para o ano novo.
Um dia, porém, estava no serviço e o patrão me chamou no escritório. Senti o sangue gelar. Ele me disse que minha enteada telefonara e que era melhor eu ir para casa.
Enquanto a bicicleta se sacudia pelas ruas, imaginava o que poderia ser: um acidente, um choque, um corte, um mal súbito... quase paro embaixo de um caminhão!
Em casa, um grupo de pessoas espreitava nossa porta com sorrisos carniceiros estampados.
As meninas choravam abraçadas e meu sobrinho chutava a bola furiosamente contra a parede do quintal. Sem entender direito, chamei os três e perguntei o que se passava. Onde estava Mara?
Foi a pequena Tati quem rompeu o silêncio e contou que os amigos do policial, que aguardava do lado de fora da casa, haviam levado minha esposa para a cadeia.
Pedi para minha irmã que olhasse os três e fui para o distrito policial.
Pude ver, através de uma janela de vidro, minha mulher algemada em um cano de metal preso à parede, enquanto esperava alguma informação sobre seu caso. Um policial teve pena de meu desespero e revelou a razão de tudo: denúncia anônima de tráfico de drogas e que um pó branco havia sido encontrado embaixo do piso de minha casa.
Impossível não perceber que aquele fora o jeito encontrado por Mara para cumprir sua promessa.
Mas, inevitavelmente, me perguntava: E agora, meu Deus? E agora?