segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

MADONNA MIA!

Eu queria ser Madonna. A primeira imagem do meu dia, desde sempre, pelo menos desde que consigo me recordar, é aquela mulher de cabelos angelicais, quase brancos, usando chapéu, pernas abertas na cadeira, braços cruzados no encosto, olhando autoconfiante pra mim.
Nos clipes, homens esculpidos aos ferros da academia, peitos rijos, másculos, luminosamente untados, eram seus escravos, menosprezados, usados e abusados. Fosse eu Madonna, estariam na cama comigo. Eu exploraria seus corpos, mão espalmada, dedos firmes como os da minha deusa; olhar performático para os espelhos (ou as câmeras). Meu destino era ser ela.
Eu dividia o quarto com Luana. Aprendi, só de olhar minha adolescente-irmã, a me maquiar, a usar um certo ar blasé, a fingir e a mascarar meus sentimentos. Meu pai entristeceria se soubesse de minhas ambições. Me levava sempre pra igreja. Queria evitar os riscos de eu me perder, de eu profanar a casa pudica que mamãe e ele haviam erguido e coberto com as folhas da sagrada escritura.
Quando pequena, minha irmã ia pra escolinha do tio Paulo. Como ele era professor de educação física, conseguia bolsa atleta para ela. Todos os anos ela fazia um esporte diferente. Ela tinha os braços firmes, as pernas torneadas, ombros emoldurados por cabelos negros que sempre prendia para não atrapalhar com os esportes. Mas nunca se deixava matricular no futebol, para a tristeza de papai.
Lá pelos meus sete ou oito anos, minha vez também chegara. Natação, pra curar os pulmões. Depois, já que respirava melhor e estava menos frágil, futebol. Detestava o esporte, mas era a forma de ter uma boa educação. Papai era muito grato ao irmão mais moço. O único da escadinha que completara os estudos. Era professor! E ajudava como podia.
A única coisa boa do futebol era a comemoração dos gols. Meninos tirando a camisa, expondo o peito que, de tão suado, me lembrava os bailarinos da Madonna. Mas, para não perder a visão privilegiada, eu me deixava aprender as artimanhas da bola. Permaneci no futebol. Até me orgulhava quando ia algum amigo de papai em casa, no domingo, e ele comentava, olhos brilhantes, “joga feito homem!”
No quarto, Luana me via dançar, rebolar, fazer caras, bocas, poses. Quando queria algo, ameaçava falar pra mãe e pro pai que eu queria ser a Madonna; que queria me chamar Luz Madonna. Eu revidava com a possibilidade de dizer do namoro com o Joca e dos comprimidinhos que ela tomava todo dia. Éramos assim. Nos defendíamos e nos ofendíamos nos momentos necessários. Foi ela que me contou como os bebês nasciam. Que eu teria pelos pubianos e tudo o mais do pacote da puberdade. Mas eu não queria isso. Só desejava ser Madonna. Por isso, quase não podia esperar a hora de fazer aula de dança. Mas o tio saiu da escola.
No ano seguinte, a mãe ficou doente. Luana não morava mais em casa. O pai não queria filha perdida sob o teto dele. O quarto era só meu. Os pôsteres, os clipes e até a maquiagem dela haviam ficado. Nunca mudei a arrumação. Mas estava só. Me sentia só. Se eu fosse Madonna, teria multidões aos meus pés. Solidão não faria parte da minha vida. Mamãe morreu.
Cada noite, papai trazia uma mulher diferente para cama. Passou a fumar. Cinco maços por dia. O dinheiro diminuía. Ele gritava. O botequim tinha um novo cliente. Luana queria me levar pra casa dela. Estava bem casada. Joca fazia de tudo por ela e pelo filho. Mas, papai me queria perto dele. Ele falava pra ofendê-la “Mais ninguém dessa família vai se perder como você!”
O som estava bastante alto daquela vez. Papai deveria voltar lá pelas onze da noite, como de costume. Eu tinha tempo. Me maquiei, coloquei uma saia curta de Luana para mostrar as formas de atleta. Minha diva me embalava em movimentos sensuais que eu repetia de olhos fechados. Quando a música terminou, no espelho, vi uma mulher que me olhava parada da porta.
Um perfume barato, misturado ao álcool invadia o quarto. Sua voz desdenhosa chamou meu pai. “Mané, vem ver isso aqui.” Não havia por onde sair. Nem como me despir de Madonna. Os olhos já vermelhos de meu pai ficaram injetados. Dentes a mostra enquanto ele espumava gritando pra prostituta sair de casa. Tirando o cinto, ele me disse que acertaria contas comigo naquela noite. Não havia o que argumentar. Fechei os olhos esperando o couro largo deixar sua primeira marca em mim. A cintada não veio.
O soco no estômago me roubou o ar. Caí com o rosto na cama e os joelhos no chão. Nem quando ainda tinha crises respiratórias me prostrara daquele jeito. Meu grito fora abafado pelos gemidinhos da Madonna que ainda se ouvia a ecoar no silêncio entre meu pai e eu. Grossas lágrimas me desceram dos olhos. Era o sexo de meu pai a me dilacerar as entranhas enquanto repetia “Toma seu veado, não é disso que tu gosta?!”

4 comentários:

Rosa Canela disse...

Nossa estou sem ar ...ótimo texto..aliás MARAVILHOSO.

Sinto sua falta ..te amo

Rosa Canela

maybe disse...

I'm appreciate your writing skill.Please keep on working hard.^^

Carlos André Paulino disse...

Muito forte, viceral até, o desfecho é revelador e sufocante. A narrativa poderia ser mais descritiva e deixar menos assuntos pendentes como no trecho: "Que eu teria pelos pubianos e tudo o mais do pacote da puberdade." "tudo o mais", para o narrador que participa da ação tira o texto do padrão que vc vem construindo, esperamos mais detalhes. Acho que "Mamãe morreu." deveria ficar num paragrafo unico, para dar mais densidade e sensação de total solidão, divisor de águas, tudo muda a partir daí. No mais acho um texto bem construido, com bom mote e desenvolvimento idem, no entanto, parece que a concisão deixou o texto um tanto carregado de informações soltas... mas o desfecho é ótimo, parabéns.

Carlos.

wealey disse...

Realidade de muitos.