terça-feira, 30 de junho de 2015

Um furo na lata

Quando criança, costumava brincar com as latas dos produtos para a casa. Com as de óleo, jogava malha. Com as de Neston, eram os pés de lata. Com as de molho ou ervilha, telefones. Algumas ganhavam rodas e, voilà, um caminhãozinho. Tantas outras formas de transformar o material em brinquedo para suas tardes após a escola. Faltavam apenas os amigos para compartilhar. O cão, que morava no quintal, não podia chegar ao quarto. Fez amizade com a solidão. Companheira fiel, intimamente palpável.
Na adolescência, costumava estufar as latas com cacos de vidro. tampava bem e jogava na rua quando os ônibus passassem. Ninguém fazia cerol melhor que o seu. Outros empinadores tinham raiva de suas pipas. Cortavam os céus, os ventos, as linhas e, uma vez apenas, uma única vezinha de nada, separaram um capacete e seu conteúdo de um motoqueiro. Nem a correria para ficar com a tia uns dias, nem os apelos, nem a inexistência de antecedentes evitaram sua ida para uma cela de crianças infratoras. Aprendeu que era preciso dizer as coisas na lata, se quisesse parecer forte.
Logo percebeu que ter uma carinha de anjo não era algo bom naquele ambiente. Ainda não tinha muitas habilidades para lidar com pessoas. Continuava íntimo da solidão. Fechou a cara, estufou o peito, falou alto. Conseguiu mais dois com quem cheirar cola. Mas logo percebeu, sempre que dela aspirava, recordava seu cerol, a pipa, a linha vermelha, os meninos invejosos e dedos-duros. Raiva, mágoa, solidão, necessidade de vingança. Perdeu o medo, numa das vezes. Mirou, olhos vidrados, um moleque no canto do pátio de cimento. Era aquele abandonado solitário que iria pagar. Empurrou o guri para a sombra. Ninguém sentiu falta dos dois. Duas virgindades perdidas. Tinha virado homem.
Abandonou o pivete sangrando. Virou as costas, fez sinal com os olhos. Os outros dois foram se divertir também. Abafaram o choro do desvirginado e viraram machos, do mesmo jeito. Na enfermaria, o corpo inerte. No pátio, ninguém denunciava. 
Chegada a noite, o agora homem chorava feito menina. Queria estar orgulhoso por ser macho, forte, viril, porque seria respeitado. Só conseguia lembrar do pai e um outro homem tocando seu corpo, mandando ele fazer de conta que eram pirulitos. Recusar foi seu grande erro. O acampamento de pescaria durou uma semana. Disseram que se contasse para alguém seria pior.
Olhava para a parede. Queria tanto fechar os olhos e acordar fora dali, voltar no tempo, nunca ter botado aquela pipa no ar, que o vulto silencioso ao seu lado cravou  em sua fronte um prego enferrujado. Virou o comentário do café da manhã. No refeitório, uma cadeira sem uma perna. No IML um corpo com um furo na lata.

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